30.6.09

Sobre Tom Waits, heras venenosas e o que resta do meu fígado


Tom Waits: o velho rabugento está uivando em algum lugar a uma hora dessas

[ego] [superego] [id] [texto-pílula]

Gostaria que minhas memórias recentes (algo absurdas) fluíssem por aqui com o ritmo sincopado de uma canção de Tom Waits. O velho rabugento está uivando em algum lugar a uma hora dessas, enquanto conto os cacos de mais uma semana descolada do continuum e ignorante da nova ordem mundial. Poesia de rua dentro de um quarto de hotel em que não dormi e uma viagem venenosa pelas heras da cidade esquecida (e sem limites).

É. Talvez ninguém entenda nada. Com um pouco de azar, todo mundo vai entender tudo. Jequitibá-rosa derramada em quantidade imprudente em um copo de cólera, e tudo o que eu não quis foi preservar o fígado e a recém-adquirida inclinação ao pós-moderno - que dizem, afinal, não existir. Reflexos autoinduzidos de cafeína e nicotina na cabeça agora. E os ecos desses dias belos e estranhos continuam a reverberar...

... no ritmo sincopado de uma canção de Tom Waits.

21.6.09

Fear and Loathing in Rio (Parte 2 e final)


Rio de Janeiro: da Av. Atlântica ao Santos Dumont em 7 minutos

[ego]

(continuando...)

Como eu falava em português com o dono do quiosque - que, sem entender muita coisa, ficou plantado a uma distância segura, para averiguar qual era a bandalheira da vez - o gringo começou a gritar "Que porra você está falando? Eu não entendo sua língua de merda, nigger*". Ok. Aqui a idéia de enfiar a mão na cara dele realmente passou a fazer parte dos meus planos para o encerramento da curta estadia no Rio. "SAI FORA", eu lati, quando o empurrei. Ele cambaleou pra trás, mas não caiu. E me empurrou de volta. "E devolve o meu isqueiro, porra", eu exigi, enquanto me endireitava. Estávamos prestes a nos engalfinhar em algum tipo de batalha absurda de rancor entre colonizado e colonizador. De uma forma bizarra, meu isqueiro - que o gringo exibia como um pequeno troféu - tinha se tornado o protocolo de Kyoto, o FMI, as duas guerras do Iraque, o turismo sexual e um pouco mais.

*nigger=crioulo. Palavra extremamente ofensiva e de cunho racista, praticamente banida do vocabulário estadunidense comum depois dos famosos levantes pelos direitos humanos e pela igualdade entre as diferentes etnias. No entanto, ainda é muito utilizada - de forma amistosa - entre alguns grupos de afro-americanos. Costuma também ser empregada por racistas retrógrados para designar quase qualquer pessoa que não seja "branca".

Antes que o pior acontecesse, o gringo disse "Ok, vou chamar meu amigo ali, que vai confirmar se você é o cara que me roubou os 40 paus, enquanto isso seu isqueiro fica comigo", e foi se afastando, para trás de um outro quiosque. Tive pouco tempo pra planejar o que eu faria a seguir. Eu queria rachar a cabeça do maldito, mas pensei que seria pouco recomendável aparecer no trabalho no dia seguinte com um olho roxo, o supercílio rasgado ou qualquer coisa assim - seria difícil explicar que em pouco menos de 12 horas no Rio eu tinha conseguido me arrebentar em uma treta com um estrangeiro ignorante que passava férias no Brasil. O dono do quisque finalmente chegou perto de mim, e perguntou o que estava acontecendo. Em meio à nuvem vermelha e negra de raiva que embaçava a minha visão, consegui, de algum jeito fazer um breve resumo do acontecido. "Ah, mas nós vamos pegar esse gringo de pau!", o quiosqueiro bufou! Pude ver que não era blefe quando ele buscou uma ripa atrás do balcão. "Do jeito que eu adooooro, americano", ele ironizou, enquanto brandia o pedaço de madeira.

Eu havia pego minha mochila e a enorme mala vazia que me acompanhavam e as colocado em segurança, perto da entrada do quiosque. "Fica tranquilo, meu irmão. Deixa suas coisas aí, sossegado, que nós vamos arrebentar esse cara! Você tava aí na sua e o cara vem mexer contigo? Vamos quebrar ele no pau", ele continuou. Um casal que namorava tranquilamente em uma das mesas de plástico já havia se levantado e agora estava parado - os dois aterrorizados - no fio de calçada que separava a ciclovia instalada na orla da avenida, onde o trânsito começava a morrer. Antes disposto a arrancar os dedos do gringo com os dentes, eu começava a ficar preocupado - principalmente por conta do tacape na mão do dono do quiosque - conforme manchetes fictícias de grandes jornais cariocas se instalavam na minha cabeça. "Jornalista e vendedor assassinam turista americano em Copacabana", "Sangue na orla - briga por dinheiro de prostituição leva turista estrangeiro à morte no Rio de Janeiro" e assim por diante. "Preciso me acalmar", pensei.

E então o gringo voltou, acompanhado de seu amigo, que segurava uma lata de cerveja e também trajava apenas bermudas e camiseta. Tinha os cabelos ruivos algo compridos, e cara de turista "Rio de Janeiro-samba-carnaval-mulata". "E então? Não é esse o cara?"
, perguntou o gringo nº 1. Eu comecei a andar na direção deles, disposto a recuperar meu isqueiro e ir embora, antes que alguém chamasse a polícia. "Não, cara, não parece ser ele", o amigo respondeu. Perplexo, o gringo ficou olhando pra mim, sem saber o que dizer. Meus olhos deviam estar em brasa quando aproveitei a brecha e tomei meu isqueiro da sua mão, estendi um colossal dedo do meio em sua cara e saí andando de volta pro quiosque, para confabular com o vendedor. Meu mais novo inimigo pensou por alguns segundos e veio me estender a mão. "I'm sorry, man. I'm sorry", ele disse cabisbaixo. Hoje, de volta à selva de pedra, confortavelmente instalado em minha cadeira em frente ao computador, eu penso que, talvez, aceitar as desculpas do gringo fosse a coisa certa a se fazer. Mas não o fiz.

Não sei ao certo como comecei a frase seguinte, mas tenho sérias suspeitas de que foi com "FUCK". Colei meu rosto ao do americano/inglês e bradei um sem-número de palavrões, todos evidentemente acompanhados de dezenas de perdigotos - brasileiros, com orgulho. Primeiro ele ficou surpreso, e depois quis bancar o macho mais uma vez, no que foi exemplarmente enxotado pelo quiosqueiro, que quase o levou ao chão, com um empurrão. Por sorte o pedaço de pau jazia, tranquilo, ao chão da orla. Foi tragicômico ver o vendedor - "paraíba" como ele mesmo se definiu depois - correndo atrás do gringo por alguns metros gritando "Son of a bitch! Son of a bitch!". Quando a celeuma finalmente pareceu resolvida - o quiosqueiro ainda apertaria minha mão efusivamente e reafirmaria seu ódio por americanos por mais alguns instantes - eu e meu isqueiro rumamos para a Atlântica pegar um táxi.

Como uma bala

À vista do primeiro carro amarelo rolando pelo asfalto, estendi o dedo, e fui prontamente atendido. Não me lembro do modelo do veículo, mas acho que era um Gol. Entrei no táxi, e o motorista fumava nervosamente um cigarro de cheiro adocicado - cravo, talvez? "E aí, companheiro? Se importa se eu terminar esse aqui?", ele perguntou. "Não, claro que não. Fica tranquilo. Vamos pro Santos Dumont, por favor", eu respondi. "Acredito que você não vá se incomodar se eu também fumar, não é?", eu segui, acendendo um cigarro, ainda emputecido pelo épico que se desenrolara em Copacabana. Ah, se eu soubesse o que ainda estava pra me acontecer...

"Meu, eu queria saber o que você faria se estivesse no meu lugar...", o taxista disparou. "Manda...", eu disse - irresponsável como de costume. "Cara, seguinte. Esse carro aqui é de frota, saca? De empresa. Aí a minha mulher ficou me enchendo o saco pra arrumar um trampo pro marido da prima dela. O cara é um folgado, nunca trabalhou a sério, largou a mulher quando ela teve o primeiro filho e depois voltou, não faz nada direito. Um merda do caralho. Aí ficaram os dois, a minha mulher e o cara me enchendo o saco pra arrumar um trabalho pra ele. Eu não queria, sabe? Pô, eu sei que o cara não presta! Mas, tudo bem, fui lá e indiquei ele pra empresa. O que o filhadaputa me faz? Arruma uma dívida de 800 reais com a empresa! Ficou 4 dias com o carro, sem circular, sem pegar passageiro, sem fazer dinheiro e a diária* correndo! E agora o desgraçado diz que não tem grana pra pagar! A dívida vai vir pra mim, que indiquei ele! Agora me fala, o que eu faço com um filhadaputa desse? Me dá tua opinião, brother". "Putz", pensei. "Mais um doido. Mais um".

*diária=taxa paga pelos taxistas para a empresa dona dos carros, contada por dia em que o veículo fica com o motorista.

Enquanto eu pensava em como a minha viagem tinha oficialmente se transformado num filme do David Lynch, o taxista acelerava cada vez mais, dançando perigosamente pelas faixas da avenida. E ele queria a minha opinião. "Diz aí, brother! O que eu faço com um cara desse? Eu desencano? Eu pago a dívida e espero ele arrumar dinheiro pra me pagar? Eu meto a mão na cara dele? O que eu faço? Eu tô indo encontrar ele na garagem da empresa daqui a pouco. Depois que te largar no aeroporto eu tô correndo pra lá pra conseguir pegar ele. O que eu faço com esse filhadaputa, cara?", ele batia as mãos no volante e falava com um sotaque carioca extremamente malaco. Estávamos a uns 120 km/h, e eu finalmente perguntei "Mas ele é seu parente ou o quê?". "Que nada, brother! Ele não tem meu SANGUE, cara! Ele é marido da prima da minha mulher. Um vagabundo do caralho", ele gritou. "Ah, então dá uma 'coça' nele, ué!?", eu disse, já sem muita paciência e consideração pelo estado físico futuro do tal vagabundo.

"É isso aí! Vou enfiar a mão na cara dele lá na garagem, na frente de todo mundo! E toda vez que eu encontrar esse cara eu vou pegar ele, onde ele estiver! Filhadaputa". Ele parecia, enfim, ter encontrado a reposta que queria, acelerava cada vez mais, praguejava e buscava o celular no bolso. Tive medo de que ele desistisse de me levar pro aeroporto, pra não perder a oportunidade de brigar com o "filhadaputa" que o tinha "queimado na empresa". Primeiro, ligou pra um colega de trabalho que, acho, tentou dissuadí-lo de seus planos agressivos. "Não, mermão, segura ele aí até eu chegar, que eu vou quebrar ele", encerrou. Depois foi a vez da sua mulher. "Você viu a merda que você me arrumou, Luzia? Você viu o que esse filhadaputa me fez?". Não pude deixar de imaginar a mulher, sozinha em casa, chorando ao telefone, temendo pelo final trágico da história. Eu temia pela minha vida, a cada ligação e pisada no acelerador.

Por fim, foi a vez da mulher do dito cujo que arrumou a dívida. "Cadê esse filhadaputa, Cristina? (...) O quê? (...) Ele não aparece em casa desde ontem? (...) Ele tá cheirando, Cristina! Abre o olho! Esse vagabundo não presta! Ficou quatro dias com o carro em casa, coçando o saco! Me arrumou 800 contos pra pagar! (...) Eu vou pegar ele onde ele estiver, Cristina! Ouve o que eu tô falando! Pode ser na frente da filha dele, onde for! E se eu vir ele na rua passo com o carro por cima dele, porra".

Quando ele desligou o telefone pela última vez, nós já estávamos estacionando no aeroporto. Contei, por alto, uns sete minutos do ponto inicial ao final, o que achei muito pouco. O taxímetro marcava R$ 18,40. "Você faz uma notinha pra mim, por favor?", eu pedi, com o coração disparado. "Claro, mermão. Você quer que eu faça de quanto?", ele perguntou. Engoli seco. "Te dou vinte e tá certo, pode ser?". Saí do carro, não sem antes dizer um tímido "Vai com calma, ok?". Peguei minha bagagem no porta-malas e ainda consegui ouvir o celular do taxista tocando antes que ele disparasse, cantando pneus, em direção ao seu destino.

Pouco depois, sentado no saguão de embarque do Santos Dumont, não consegui deixar de pensar em quais seriam as manchetes dos principais jornais cariocas do dia seguinte...

7.6.09

Fear and Loathing in Rio (Parte 1)


Rio de Janeiro: a cidade maravilhosa continua linda. E estranha

[ego]

O expediente oficial no Rio 40 graus já tinha terminado. Sentado em uma cadeira de plástico amarelo de um quiosque encravado em algum lugar da orla de Copa,
não havia muito o que fazer além de bebericar displicentemente enquanto esperava a hora de pegar um táxi pro Santos Dumont, e, dali, um voo de volta pra selva de pedra.

Não me lembro exatamente quanto tempo fiquei ali, mochila a tiracolo e uma enorme mala de viagem - vazia - pousada ao lado da mesa. Mesmo no escuro, as ondas do mar podem colocar qualquer um em estado de divagação galopante. A meditação pronunciada só se interrompia pelo vasto contingente de vendedores, engraxates e doidos de pedra que insistem em puxar papo, ainda mais com alguém que descaradamente não faz parte do organismo pulsante que é a faixa de areia. Confesso que fiquei tentado a comprar uma canga ornada com a imagem aérea do Rio, depois de vê-la, tremulante, por umas quinze vezes, nas mãos de diferentes vendedores.

Bem... Lá pelas tantas a malemolência do Atlântico já não seduzia tanto assim. Os termômetros batiam em 20 graus (ainda assim, temperatura indecente comparada ao frio que fazia em Campinas ou São Paulo no mesmo dia), e, apesar de o congestionamento da Avenida Atlântica não dar sinais de arrefecer, chegava a hora de ir embora. Eu estava prestes a me levantar - ou quase -, quando um sujeito louro, parrudinho e de bochechas rosadas se aproximou. Pelo andar trôpego, pude notar que ele havia bebido um tanto mais que eu. "Hey mate! Got a light?", ele disse, ostentando um cigarro apagado. "Sure...", disse eu, estendendo o isqueiro em sua direção. Eu só não imaginava que isso seria o início de um diálogo - em inglês - que poderia estar em qualquer filme já feito sobre a máfia.

Sem cerimônia, o gringo, que trajava apenas bermuda e camiseta, se sentou à mesa. Enquanto meu novo companheiro acendia o cigarro, perguntei se ele era americano. Achei que seria uma boa - e inusitada - oportunidade de treinar a língua dos saxões. Já soltando fumaça pelos cantos da boca, ele brandiu o isqueiro na minha cara, e pensou por um segundo. "Você é o filho da puta que me levou àquela merda de stripclub ontem à noite", disparou. Não pude deixar de rir - ainda não sabia que era sério. "Perdi 40 paus por causa daquela droga", ele continuou. "Mas, e aí? Se deu bem, pelo menos?", eu brinquei, inadvertidamente.

Ainda segurando meu isqueiro, o americano (que, pensando bem, também podia ser inglês, pelo sotaque) ficava cada vez mais vermelho. "Não, 'cunt*'! Perdi 40 paus naquela merda! Quero meus 40 paus de volta! Me DEVOLVE OS 40 PAUS!". Ok, nessa hora vocês devem imaginar que eu, finalmente, percebi que a coisa era for real. Enquanto eu pensava - e dizia - "WHAT THE FUCK?!", o gringo puxava minha mochila, deixando claro que, de alguma forma embriagada, acreditava estarem ali os malditos 40 paus (aliás, seriam dólares ou reais? Isso não ficou claro em momento algum).

*cunt=boceta. Normalmente utilizada como ofensa a pessoas do sexo feminino. Similar a "vadia" ou "biscate". Pode ser utilizada para ofender um homem, também. Especialmente em filmes de gangues ou em Copacabana.

"Ok! Devolve o meu isqueiro!", eu disse. "Não sei em que porra de lugar você se enfiou ontem à noite, mas eu não estou com o seu dinheiro. Nunca te vi na vida! Acabei de chegar ao Rio, e já estou indo embora! E quero o meu isqueiro de volta!". Ele não cedia, repetindo insistentemente a história da grana perdida no stripclub, e dizia "CUNT!" a cada 2 segundos, mais ou menos.

O dono do quiosque notou que havia algo estranho no ar quando ambos (eu e o gringo) levantamos e começamos a gritar um na cara do outro (mais tarde ele admitiria que no começo achou que estávamos brincando, mas ficou desconfiado quando começou a ouvir "aquele monte de 'FUCK' pra lá e "FUCK' pra cá") e se aproximou, devagar. "Ei, companheiro! Dá uma força aqui, vai!" eu gritei pro cara do quiosque, entre uma e outra saraivada de "CUNT"s cheios de perdigotos estrangeiros. A idéia de enfiar a mão na cara do americano/inglês ainda não fazia parte dos meus sonhos de consumo.

(continua...)

1.6.09

Carta aos meus quatro filhos que poderiam ter nascido (revisitada)



[ego]

"Considerar um plano simples para a minha trajetória me conforta às vezes. Ter uma vida correta, acordar cedo e ler o jornal durante o café. Trabalhar para comprar as coisas que me fariam esquecer das coisas que eu faria se não estivesse trabalhando para comprar as coisas que..."

Falta pouco para as horas mais avançadas dessa que será a madrugada mais fria do ano até agora. Sigo soprando a fumaça pra fora da minha cabeça, resignado. São tempos realmente estranhos em Wonderland - a ameaça de uma hecatombe nuclear está mais próxima que nunca, e mais um avião acaba de sumir em um ponto longíquo sobre o oceano.

Desintegração do indivíduo frente à grande Máquina. Construção de uma nova consciência coletiva, onde nada é novo, tudo já foi dito, redito e linkado. Gostaria de ter mais uma vez a alegria simples de ver uma coruja desavisada pousar no muro, mas as corujas já não pousam por aqui. Foram elas que mudaram ou fui eu?

Subitamente, tive vontade de rever "It's All About Love", o libelo incompreendido de Vinterberg. Os ugandenses não estão voando, mas parece ser uma questão de tempo até nossos corações pararem de bater.

Coréia do Norte, Air France, GM, Obama e Twitter...

"É nesses dias que me lembro de manifestar minhas congratulações. E aí só deixo a vida soprar pra fora a fumaça..."

O que mais?