6.10.09

O caráter “libertário” de uma cinta-liga (?)



Feminista em manifestação nos anos 1960: mostrar o corpo não tem nada de novo

Há pouco mais de uma semana entrevistei Anne Becker (20 anos, estudante de moda, e uma das musas [in]voluntárias do movimento #lingerieday¹), que, com seu arquétipo digital no Twitter – @annebecker –, atraiu a atenção de homens e mulheres (uns 2 mil pra ser um tanto preciso) ao expor corpo e ideias nas chamadas “mídias sociais”. Veementemente criticado pela iniciativa, cedi o espaço aqui configurado a uma ilustre representante do “segundo sexo” (na definição grave de Simone de Beauvoir) – uma mulher, jornalista e pesquisadora das questões de gênero – que julgou a publicação do post uma atitude dessas que reiteram a “posição de inferioridade” feminina na sociedade.

Em minha defesa (e não que eu ache necessário fazê-la), a entrevista, como o título já adiantava, buscava compreender como a Internet radicalizou as possibilidades de romper a barreira do anonimato (ou esculhambar esse conceito tão relativo), seja postando fotos provocantes, seja atacando a esquerda ou a direta, ou ainda produzindo conteúdo sobre qualquer coisa que seja. Claro, não sou hipócrita. Entrevistar uma “musa” da rede vai, invariavelmente, atrair a atenção dos incautos. Ainda mais se ela for @annebecker. E estiver “seminua”. Don’t hate the player, hate the game.

Ademais, o espaço está aberto. E o diálogo é pertinente. Sempre.

¹ Coordenado por Gravataí Merengue – @gravz –, entre outros, o movimento convidava mulheres a colocar em seus perfis do Twitter – no dia  29/07 (supostamente o Dia Internacional da Lingerie) – fotos em que estivessem vestindo lingerie.



Sobre lingeries e submissão – a urgência da condição
feminina segundo uma (outra) mulher
por Talita Zanetti, jornalista e especialista nas 
questões de gênero ligadas ao feminino



“É preciso examinar o arquétipo da mulher moderna. Mulher emancipada, é certo, mas cuja emancipação não atenuou as duas funções, sedutora e doméstica, da mulher burguesa”. Edgar Morin

Toda a discussão começou na manhã de terça-feira passada, 29 de setembro, quando o Bruno anunciou a entrevista com Anne Becker para o Cotidiano Gonzo. Minha reação foi: “Por que você fez isso?” A reposta: “Para conseguir uma maior exposição do meu blog”. Fiquei estarrecida com a resposta. Como assim, em um meio que se pretende “a nova fronteira da comunicação”, as chamadas mídias sociais, é necessário utilizar a mais simples e primária estratégia de marketing, a exposição de uma mulher seminua, para conseguir visibilidade? Desanimador. Mais do mesmo. Bom, esse foi um ponto da discussão que tratou da comunicação em si, os meios e as mensagens, mas que não é o objetivo do presente post. (Alguém se propõe?) 

O ponto mais explorado na polêmica gerada pela entrevista foi a questão do gênero. Também é desanimador ver que muitas mulheres continuam corroborando com atitudes que reiteram nossa posição de inferioridade na sociedade. Se alguém tiver alguma dívida de que as mulheres continuam sendo o que Simone de Beauvoir chamou de ‘segundo sexo’, seguem dados ilustrativos: a RAIS - Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego de 2008 constatou que a proporção dos salários médios das mulheres, quando comparados aos dos homens, ficou em 82,8%. Mostrou, ainda, que se tal diferença for restringida a profissionais com nível superior completo, a diferença salarial é ainda mais expressiva: as mulheres têm salários médios que correspondem a 56,5% dos salários dos homens. Para falar em jornalistas especificamente (grande parte do público deste blog), o último levantamento é datado de 2004, e constata que as profissionais do sexo feminino ganhavam cerca de 78,77% dos salários dos profissionais do sexo masculino.

A leitura superficial desse tipo de comportamento ou posicionamento pode levar a considerações, já expressas neste blog, do tipo: “que atitude corajosa, libertária, a menina não tem medo de falar sobre sexo, de expor a sexualidade”. Este, inclusive, é o ponto mais interessante da entrevista da garota, quanto esta tenta se defender de posturas conservadoras ou discriminatórias: Ah sim, muita gente me chama de puta, vaca, tem gente que acha que eu sou só a foto mesmo e porque eu falo de sexo eu sou uma imbecil sem nada na cabeça, mas eu sinceramente não ligo. Alias, falando mais sobre as pessoas que têm essa atitude negativa quanto a mim (ou qualquer pessoa com mais "liberdade"), eu acho é que na verdade é muito dificil pra maioria das pessoas conceber o fato de que sexualidade não é uma coisa "feia". Tem muita gente que acha que tem que ter extremo pudor ao falar sobre isso, como se fosse errado. 

Concordo com a parte em que ela fala da dificuldade das pessoas falarem sobre sexo, como se fosse uma coisa errada. Conheço as pessoas e sei como nossa sociedade é conservadora e hipócrita. Longe de mim defender a repressão a qualquer tipo de atitude em favor da liberdade. Porém, a critica se coloca no fato de que a exposição do corpo feminino não tem nada de libertária como quer nossa querida Anne Becker, quanto se apresenta como pessoa com mais "liberdade". A exposição do corpo feminino como uma demonstração de vanguardismo, com um quê revolucionário, foi um artifício utilizado pelas mulheres feministas já nas décadas de 1960 e 1970, e foram manifestações inseridas em um contexto histórico muito diferente do nosso. Ou seja, a exposição do corpo feminino não é nenhuma novidade.

Acredito que falta a percepção de que a banalização do corpo feminino corrobora com o machismo reinante na nossa sociedade na medida em que representa a desvalorização da mulher e sua submissão aos estereótipos de beleza, moda e sedução que nos escravizam em todos os tempos (aliás, um dos grandes símbolos da revolução feminista foi a queima de sutiãs, o que também questiona o caráter “libertário” de uma cinta-liga). 

Bom, meus caros e caras, minha intenção aqui não é atacar ninguém, quero apenas apresentar meu ponto de vista e incitar uma discussão um pouco mais aprofundada sobre uma das questões que considero mais urgentes na nossa sociedade: a condição feminina.

12 comentários:

Anne disse...

Hm, entendo seu ponto de vista e concordo em partes também.
Quando aceitei a entrevista, assim como aceitei outras e participações em podcasts e etc já sabia que era pra "chamar a atenção", porque querendo ou não (independente das intenções) uma pessoa (ainda mais mulher) com o tipo de liberdade que eu (e muitas outras do twitter) tem, CHAMA a atenção. Então não é como se eu estivesse caindo nas garras do bom e velho lobo mau chamado machismo.
Sexo vende, em todas as formas, todos sabemos disso. Seja em forma de uma mulher de cinta liga ou um anuncio dos belos modelos da Calvin Klein apenas de cueca nas fotos.
O fato é, eu não vejo problema em nenhum dos dois casos. Acho o fato de baterem na mesma tecla de "ah, mas é machismo e vc não percebe, está sendo usada, tadinha, oh quando ficar mais velha talvez se arrependa" (não que vc tenha dito com essas palavras e exatamente isso, mas dá pra entender o que eu quis dizer), isso é extremamente batido pra mim.
Eu concordo com muitas coisas do feminismo, mas outras acho radicais e, na minha opinião, irracionais.
Concordo com a questão da queima dos sutiãs nos meados dos anos 60/70 (não me lembro ao certo, corrija-me se estiver errada), assim como quando as mulheres negaram-se a se espremer em corsets que chegavam a prejudicar a saude delas muito antes da queima dos sutiãs.
Acho o máximo a parte moral disso, porém do outro lado do ponto de vista, em 1940/50 as mulheres voltaram a usar os corsets como arma de liberação sexual. Veja bem, nesse caso era escolha DELAS usar o corset, como prova de que ao contrário de ser submissa ao tão falado "padrão de beleza", ela usava porque queria, já que o grande problema da época era o fato da mulher ser colocada sim abaixo do homem, ao ponto de não poder explorar sua sexualidade. O corset nunca tinha sido "sexual" até então, mas elas fizeram com que fosse. Está tudo aí, na história da moda, nem precisa ser do feminismo.
Enfim, como disse, entendo seu ponto de vista. Concordo com algumas coisas, mas discordo de outras. O padrão de beleza "repressivo machista" não é só feminino, também temos padrões pros homens, mas isso sempre existiu e sempre vai existir.

Bravo disse...

Espero viver o tempo em que a nudez seja apenas bela, sem tantos valores éticos acumulados. Essa parada de moral estraga o prazer das coisas.

O sujeito não pode consumir pornografia pq tem o lance da mulher-objeto.

Quer sentir uma larica total... fora de cogitação camará, assim vc incentiva o tráfico.

Quer ficar sem trabalhar, mas é aí? e o futuro? quem vai te sustentar. Que merda que tudo é tão complicado.

Anne disse...

Na verdade, complementando, a parte irônica disso tudo é que: se eu fosse uma gordinha peluda, cheia de estrias e celulite, fazendo a mesma pose, com as mesmas roupas e no mesmo contexto, eu estaria fazendo um protetsto, um "statement". Mas como não sou (e a maioria, se não todas que participaram não eram), caio na parte do "padrão de beleza machista" e mimimi. ;P

Bruno Guerra disse...

Concordo com muitos dos pontos levantados por ambos, principalmente no que diz respeito a tudo estar tão "complicado" hoje (e não foi assim sempre?).

Ademais, fico feliz de promover um debate desse tipo aqui. Obrigado mais uma vez a Anne por ceder a entrevista e por seguir comentando. Obrigado a Talita, que se dispos a escrever a sua opinião e não apenas manifestá-la a mim. E obrigado a todos que acompanham este blog por dedicar um minuto a pensar sobre esse turbilhão de possibilidades que vivemos agora na era da chamada "web 2.0".

Os paradigmas são os mesmos? Talvez. Mas a forma como nos relacionaremos com eles nunca mais será a mesma.

Bravo disse...

Anne, vc tem consciência do corpo que tem e o utiliza para promoção pessoal graças à sociedade machista. Não simplesmente vontade de tirar a roupa, se fosse, vc faria isso em casa privativamente e não veicularia as imagens na Internet. Agora, quer fazer, faça. Eu acho da hora.

Bravo disse...

Apesar de que a Anne merece créditos porque ela não é uma mulher tão maravilhosa, mas cria uma imagem sedutora de si. o que no fundo é uma grande porcaria, mas não é fácil.

Señor Okulto disse...

Acho que posso, ainda que tardiamente, colaborar para apimentar esses comentários. Essa semana na Veja (argh!), li um artigo de uma mulher, da qual não lembro o nome, que dizia que na verdade a pessoa feminina não deseja nada além de liberdade. Acho que essa colocação resume tanto a vontade de Anne, quanto de Talita, até chegar ao Bruno e, por que não, o Bravo. Todos precisam de liberdade para dizer e fazer o que quiserem. Acredito que essa seja a "revolução" das mídias participativas. Abraços a todos...

Bruno Guerra disse...

Aprovo! Agora, a Anne Becker parou de falar comigo depois desses desdobramentos! Pô, Anne, não foi cilada nem nada! O meio pode ou não ser a mensagem. BTW, faz-favor!!! PORRA!

Anônimo disse...

Próximo tópico: Fernanda Young na Playboy.

Quero ler os comentários do Bravo e os do Bruno. C'mom, guys. :)

Bruno Guerra disse...

Eles virão, Talita. Aguarde e confie!

Vida em close disse...

Caro Bruno

Conheci o seu blog por meio do senhor Marcelo Quaz, meu amigo há alguns anos.

Você, como eu, deve ser um grande admirador do dr. Thompson, pela frase que define o seu blog.

Não creio que você tenha entrevistado a moça só por fins publicitários; acho que foi mais sarcasmo mesmo.A Thalita é uma moça inteligente, articulada, e devia entender isso, creio eu, Ela também me conhece.

Acho que estamos em uma época das mais babacas e retrógradas que já existiram, mas com um verniz de liberdade absoluta que na verdade não nos serve pra porra nenhuma - nem o presidente mais corrupto do Senado da história recente conseguimos depor. Isso com todas essas redes infernais de comunicação e celebridades imbecis que pedriam até para o Ashton Kuschter dar uma forcinha (vai ser medíocre lá no inferno).

A superficialidade é mortal. E "pessoas vazias podem ser muito perigosas".

O que vemos são blogueiros celebridades, meninas nulas ganhando fama no Twitter posando de libertárias e congêneres.

Se voce tiver lido "Reino do Medo", último livro do Thompson, vai sentir essa hipocrisia de gelar as tripas.

Estamos com a corda no pescoço, e a tal corda chama-se LIBERDADE (ainda que tardia o caralho, está aqui, as nossas mãos!) essa palavra sem viço algum.

Esvaziaram o sentido das ações. E tem gente achando isso demais, e se promovendo, e gerando, como dizem "buzz", termo predileto das agências de publicidade.

Não sou um cara pessimista, mas cada dia que passa, estou vendo que é difícil não ter uma posição hostil contra esse monte de lixo que oblitera nossas vidas e entope nossas veias. E só quero saber o que pode dar certo, não tenho tempo a perder.

Um abraço, qualquer dia nos conhecemos.

Rodrigo Saffuan

Bruno Guerra disse...

Caríssimo Rodrigo, obrigado pela visita, pelo pitaco e pelos argumentos. Odeio responder comentários quando não estou pronto para fazê-lo como gostaria, portanto fica o convite para uma mesa de bar (o teatro de arena dos incautos). Por hora, um pouco de tudo o que ando pensando (sobre isso tudo e sobre nada disso) está aqui http://migre.me/9yxM.

Um abraço!